quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Fifi Abdou: Corpo Policêntrico





Nos intervalos da pesquisa do doutorado, prometi a mim mesma voltar a estudar minha grande inspiração na Dança do Ventre – Fifi Abdou. E assim, tento seguir a risca a promessa. Mas devo confessar: que sufoco!!! Primeiro porque fico hipnotizada pela sua dança e qualquer tentativa de fazer alguma leitura/análise me escapa. (Estou/fico totalmente rendida). Depois, estou proibida de grandes esforços físicos – recomendação médica (logo vocês entenderam o motivo ;-)), daí fico a ponto de infligir essa regra. Ai Jesus!

A minha proposta é começar analisar alguns dos seus vídeos e arriscar entender um pouco a forma como organiza os movimentos da dança. Para quem se interessa por um pouco da sua bibliografia, devo dizer que vou decepcionar, pois, aqui, não farei esse tipo de abordagem. Perdoem-me, mas basta colocar no nosso queridinho GOOGLE o nome Fifi Abdo ou Abdou, que imediatamente saltam aos nossos olhos diversas opções de busca.

A escolha...

Escolho Fifi por alguns bons motivos. Primeiro sua pessoalidade em cena, a forma como se apresenta irreverente (debochada às vezes) e com um domínio de quem conhece cada pedacinho que pisa. Estar/dançar no palco, preenchendo-o, é uma tarefa para poucas. Ela, o faz, como se o palco fosse a sua casa, extensão da sua vida cotidiana, com uma familiaridade e uma intimidade, que desloca o glaumor impressa nesse espaço sagrado.

Fifi sem saber, talvez, é mais contemporânea que muitos dançarinos da atualidade. Profana o palco, tirando-o da esfera do sagrado e o restituindo para a vida comum.

Se Giorgio Agamben – filósofo italiano badaladíssimo na atualidade conhecesse a atuação de Fifi em cena, concordaria sem dúvida, que a sua dança traduz de forma muito clara o sentido de profanação proposto em seu livro – Profanações (2007). Para este autor, “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (AGAMBEN, 2007: 66). É nesse sentido, que a “nossa” Fifi é uma mestra. Neutraliza a “aura” sobrenatural que muitos artistas encarnam ao passar da coxia e humaniza-se fêmea, mulher. Jogando com os textos femininos particulariza cada gesto – o enxugar o suor, o passar a mão no cabelo, o ajeitar do traje, o caminhar pelos quadris, como quem caminha pelas ruas da sua cidade natal. Fazendo da sua dança um lembrete: eis me aqui! Pessoa, humana, mulher, artista, dançarina, muitas de mim, que se fazem e estão juntas no corpo que dança.

É justamente a encarnação da sua pessoalidade que faz da sua dança uma ação profanadora e eu diria mais, política, uma afirmação de gênero. Especificamente, na cena em que leva para o palco a shisha (em outro vídeo) e autoriza as mulheres a fazerem o mesmo. Retirando este hábito da esfera masculina.


Outro aspecto é a escolha econômica dos movimentos. Em sua cartografia corporal, Fifi nos ensina que o pouco é MUITO. Discordo de quem acha que ela possuiu um “dos vocabulários musicais mais limitados e repetitivos que uma dançarina profissional poderia ter: basicamente seus movimentos são oitos, redondos, shimmys, deslocamentos e o básico egípcio” (http://www.dancadoventrebrasil.com/2009/05/fifi-abdo.html). Sem ofensas, afinal podemos, sim, ter opiniões discordantes (e isso é muito saudável), acredito que Fifi utiliza-se da economia dos movimentos para nos apresentar um corpo que brinca com sobreposições de movimentos e combinações. Um corpo policêntrico e carregado de poliritimia.

Vamos ao vídeo acima...

Para quem é novata na dança, digamos que o de imediato salta aos olhos, ou melhor, aos ouvidos? A sensação de que os movimentos que se iniciam no quadril de Fifi, são nada mais nada menos, a partitura musical do alaúde. Em vez de notas musicais, o shimmy, ocupa-se dessa tarefa. Traduz-se em som, em música.

As repetições na parte inicial do vídeo, os oitos e redondos, sobrepostos de shimmy, fazem a leitura da melodia, de uma forma tão sincronizada, que pelo amor de Deus, a repetição se traduz em qualidade. Fifi nos ensina que a respiração de cada movimento torna a execução orgânica, sem esforço, tornando-o o quadril pura musicalidade.

Uma rápida consulta nas dançarinas da atualidade revela o sentido inverso. Os palcos do mundo abrigam uma hemorragia de coreografias, sendo cada uma, um exagero de movimentos. Mal se acaba um shimmy emenda-se num outro passo e num outro e num outro, etc., onde a preocupação está em apresentar um cardápio de combinações ditado pela moda e nem sempre na leitura musical, na organicidade da dança. O preocupante é que esse excesso de oferta, não resultou na transformação de quantidade em qualidade.

Revisitando Fifi, penso que se torna urgente repensar o que vem sendo construindo por esse sistema de excessos. Onde a organicidade/simplicidade escoa-se no consumo exagerado de passos de dança (combinações, re-leituras, sobreposições), sem que estes tenham tempo para torna-se corpo, maturar-se.

Avançando mais um pouco, penso que só uma dança que integra os movimentos de forma madura, entendendo maturidade como experimentação, tempo necessário para o corpo experimentar, apropriar-se do movimento e fazer-se dança; torna-se capaz de comunicar-se de forma policêntrica.

Repare mais um pouquinho no vídeo... na passagem 0:58 em diante.

Retirado o enquadramento do quadril e fica claro a forma como os movimentos se desenham não mais sob um único comando. Fifi em sua dança nos apresenta um corpo policêntrico, que se comunica através de várias partes, ou seja, com o comando de vários centros. Numa dança dialógica, que por horas começa com o quadril, que chega aos pés – enraizado na terra, retornando ao quadril e se estende ao tronco, braços, cabelos e , e...como uma dança que se desenha com linhas sinuosas de energia. Observe que, nesse tipo de cartografia, não existem hierarquias. Ainda que sua dança tenha a predominância do quadril como ignição dos movimentos, estes não encerram neste ponto. O quadril não se torna o grifo da dança.

Eu, juro que tento fixar meus olhos em algum centro localizado, faço como exercício mesmo. Fixo no quadril e começo a ditar os nomes dos passos, como uma sabatina professoral. Às vezes até fico por muito tempo, até porque o enquadramento deste vídeo foi feito privilegiando o quadril. Mas não adianta! Fifi me conduz aos seus braços livres e desarmardos que me contam histórias da sua adolescência. Outras vezes me leva aos seus cabelos volumosos negligenciados no seu penteado que me levam até as suas mãos. Revelando que sua dança pode ter, sim, mais de um centro motor – movimentos iniciados em duas partes do corpo ou mais, em um diálogo que agrega, integra e não fragmenta. Tipo de organização que caracteriza a dança egípcia, um desenho como um caminho sem fim, com fluxos que continuam e descontinuam, sem revelar seus pontos de liga ou quebra.

Por fim, nesse vídeo Fifi me ensina que para dançar organicamente é preciso autonomia para aventurar-se na natureza humana. Brincar com o interno... com o que você é, nada mais. Escapar da ditadura do outro, da necessidade cega que temos de pinçar movimentos que vêm de fora (do outro e continuam no outro), como verdadeiras pérolas, ignorando os seus próprios, que surgem, nascem das articulações, do seu jeito de experimentar e fazer-se corpo.

Fifi repropõe outro sentido para a autonomia... Ensina-me que autonomia nada mais é do que sentir-se confortável com... dentro... E que não importa a direção que você trilhe, o estilo que construa, o importante é estar confortável no que faz e acredita.

Referência do livro de Giorgio Agamben.

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

8 comentários:

  1. A melhor análise de Fifi que já li. Não tenho nada a acrescentar, só a pensar!
    Parabéns, Ma!
    Beijo, Vi.

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  2. Que análise maravilhosa!!! Sou nova nesse território de dança e só pude ver a dança dessas bailarinas mais antigas recentemente, antes só lia algumas coisas em revistas... Entre as que vi pelo Youtube: Tahia Carioca, Soheil Zakir, Nagwa (não sei se é assim que se escreve os nomes delas, perdoem) as que mais me impressionaram foram a Samia Gamal e a Fifi... Já tinha visto esse vídeo e só conseguia pensar: "que quadril é esse, parece que ele é o instrumento musical de onde a música tá saindo", rs...

    Eu adoro ficar em casa repetindo coreografias como as da Jilina, por exemplo. São muito divertidas, mas às vezes tenho a impressão que a transição de movimentos é tão rápida que a gente perde muita coisa...

    Muito legal essa sua proposta de analisar uma dança com conceitos que até então já tinha visto serem empregados em textos, mas não na dança, como o dialogismo.
    Em semiótica acho que vocês consideram que tudo é um "texto", certo?

    Esses tipos de análises enriquecem ainda mais o nosso estudo.
    Adorei. Abraços...

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  3. Marcinha, que coisa maravilhosa! Vc deveria escrever mais vezes sobre essas análises de vídeos/bailarinas. Fascinante!
    Bom, eu amo Fifi e esse vídeo é maravilhoso (já o postei em meu blog uma vez). Mas, pra mim, a performance mais tocante dela ainda é ela dançando Lisa Fakir na Praça de Azbakia. Af... de arrepiar os cabelos da cabeça!

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  4. Marcinha, concordo com o post acima, analise outros vídeos e nos presenteie com seus pensamentos...
    Eu penso nesses aspectos da dança a cada vez que vejo mais uma coreografia clássica de 12 minutos (chatérrima diga-se de passagem, cheia de cambrets... É outra lógica, é o pensamento ocidental... (com toda a polêmica que o termo carrega!).
    Vamos em frente, tentando adapatar nosso corpo às demandas que nos fazem bem!!!

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  5. Oi meninas que bom esse retorno de vocês. Fico muito feliz! Vou continuar sim nessa trilha de análise dos vídeos e por isso vou precisar mais ainda das sinalizações e comentários. Pois temo em errar a mão e dar um tom mais acadêmico a essa proposta, coisa que realmente não gostaria. Acho bacana trazer os teóricos que estou estudando no doutorado, mas sem errar a medida, tá? Cada qual no seu lugar. Tenho aprendido muito com o exercício de ver vídeos de dança no CED - PUC - Centro de Estudos de Dança coordenado por Helena Katz e escutar a análise crítica do grupo. E, com isso pensei em fazer o mesmo com a nossa dança do ventre. Sair do lugar do gosto e não gosto, para tecer comentários/aspectos da construção da dança e nada mais. Vou pedir a colaboração de vocês, tá? Vamos seguir juntas e aceito sugestões dos vídeos a serem analisados.
    Laurinha você está certa, quando disse que o corpo comunica textos. Adotei o verbo comunicar ao se referir ao corpo, pois acredito ser mais propício que expressar. E são tantos textos, hem?
    Vamos em frente... Me ajudem a construir esse blog. beijos e obrigada!

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  6. Perfeito,Marcinha....deu saudades de estudar Fifi de novo! bjão

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  7. Oi, Márcia, estou conhecendo seu blog, é maravilhoso e parabéns por sua análise. Há pouco dei uma aula que gostaria de ter dado há mais tempo até, sobre o estilo e movimentação característica de Souher, Fifi e Randa (exemplo bem contemporãneo), a maneira com que elas ilustram seus mundos e personalidades através de seus movimentos. Escolhi as três por aparentarem expressões muito diferentes, em relação á leitura musical, força, intensidade, mas ao mesmo tempo, por serem "conterrâneas" elas trazem um elemento primordial que buscamos muito para nossa dança. Existe um sentir-se "a vontade", uma malícia natural, como se contassem pra nós, pouco a pouco, quem elas são, sem receios. Vejo isso também no Tito, que consegue nos dizer descaradamente "mulher, é assim que se faz, ó!" "sejam femininas, charmosas" e alinhava com aquele sorrisão.
    Sugiro que experimente analisá-lo, vou ficar curiosa para ler suas definições! Beijo grande

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  8. Oi Daiane, que bom! Seja Bem vinda. Nossa fico muito feliz que nesse mundo virtual, pelo menos, tem se formado um grupo de pessoas que querem pensar mesmoooooo sobre dança do ventre. Vou fazer uma análise de Souher e depois pensarei em Tito, mas sinceramente, da versão masculina, escolho Amir Thaleb....execessos a parte, ele é um laboratório para a mesmice, ou melhor,antídoto para a cara de "botox" que impera nas expressões da atualidade. Obrigada pela sua visita!!!! beijinhos

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