sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

QUANDO O ABSIMO SE ESTABELECE...

Cena do Cotidiano:

Qual é a sua profissão? – Professora de Dança. Ou Dançarina.
Possíveis situações a seguir:
- silêncio
- sorriso meio sem graça de quem fez a pergunta somado a uma enxurrada de frases totalmente sem propósito (Que legal, pelo menos não tem stress. Você dança o quê? Sabe dançar tudo, não é mesmo?, etc.)


Quem nunca passou por uma situação dessas? Como também preencher a ficha de consultório médico e a atendente olhar para você como se fosse um ET ou nas piores situações ser apresentada como a dançarina da família. Em meu caso específico, some-se a isso a tentativa de se justificar a escolha com um currículo extenso. Minha mãe sempre completa com a seguinte frase: ahhh, Márcia também é veterinária ou então... ela fez faculdade de dança, mestrado e agora está no doutorado. Tentativas de dar um diferencial, aqui, entendido como um “status” ou até mesmo uma legitimação intelectual a escolha pela área da dança.

Desde que me entendo por gente foi assim. Aos 17 anos quando prestei vestibular, minha opção inicial era a dança. Mas... ouvi de meu pai os seguintes argumentos: Dança não é profissão! Não dá dinheiro! Faz Medicina, Direito... e segue fazendo suas aulas de balé.

Não teve jeito... o chamado era mais forte. Depois de me graduar em Veterinária e ter condições de me sustentar, corri para a dança.

Mas vamos analisar esse abismo que se faz presente na vida de quem escolhe a área de dança como profissão.

Seria culpa de René Descartes?
René Descartes (1596-1660) foi filósofo, físico e matemático francês. Destacou-se por ser conhecido como fundador da filosofia moderna e ter influenciado o Pensamento Ocidental.

Descartes com o seu rigor matemático e racionalista foi responsável pelo cartesianismo ou pensamento cartesiano, uma oposição ao empirismo da época. Nesta direção, acreditava que Deus criou o universo como um mecanismo perfeito. E em relação à ciência só se poderia dizer que algo existIa quando provado. Assim, dividiu a realidade em res conngitas (consciência e mente) e res extensa (corpo e matéria).

Desse jeito, a distorção ideológica estava posta. Levando as gerações de filósofos seguintes a reforçar o entendimento da mente e corpo como duas instâncias separadas. Daí vem todos os equívocos que vivenciamos hoje, principalmente o entendimento da mente como nossa parte pensante a subjugar e comandar o corpo (veja aqui no Blog a postagem sobre Dança e Cognição).

Basta prestar um pouco mais de atenção na forma como falamos, nas propagandas veiculadas na mídia e na forma como fomos educados. Vamos lá... “Inteligente é aquele que usa a cabeça”! Foi mais ou menos com um argumento desses que até pouco tempo a propaganda do supermercado Carrefour pregava o pensamento cartesiano. Com a garota propaganda - Ana Maria Braga - sugeria que os clientes usassem a cabeça na hora das comprinhas, ignorando todo o corpicho!Sem contar frases imortais que ouvimos deste criança: “quem não pensa o corpo padece”. Como se só agíssemos certo quando pensamos com a cabeça – lócus da razão.

Coitado dos nossos corpichos! Foram renegados, ditos como parte insana, emocional e até mesmo traidora. Afinal, a área jurídica se utiliza desse argumento para aliviar a sentença de muitos réus. Como se movidos pela emoção tivéssemos perdido totalmente nossa capacidade de raciocinar e de nos responsabilizar pelos nossos atos. Não é a toa que muitas vezes após sermos tomados por alguma emoção abrupta, dizemos a seguinte frase diante da possibilidade de proferir alguma palavra: “deixa eu me recuperar”. Como se fosse preciso voltar à razão para garantir a produção de um conhecimento/fala confiável.

Assim, temos a seguinte topografia:

MENTE/CABEÇA: lócus da razão e, portanto, da cognição.
CORPO: lócus do sentimento e das emoções, sem chance alguma de produzir conhecimento confiável e duradouro.

E, agora José? Como tratar o corpo que dança?
Falar de Corpo, como se sabe, é também falar de dança. Ainda que o senso comum equivocadamente associe APENAS “sentimentalidades” ao corpo que dança. Ora se o corpo só expressa emoção e sentimento, o que se esperar da sua dança? Nada mais que uma fala indizível, que se basta na sua auto-apresentação.

Por conta do Pensamento Cartesiano associamos erroneamente a dança como uma arte menor, um fazer que se basta no efeito produzido em nós. Por isso não é raro acharmos pessoas que acreditam que dança não é profissão ou que para se dançar não precisa de estudos. Pensar, para quê? Pensar demais estraga! Basta sentir, basta dançar! Sinta! Sinta! Se entregue! (quantas vezes já ouvi isso!)

Sou tomada por indignação quando ainda existem pessoas que se surpreendem com o fato de existir faculdade de dança ou pior, um Programa de Pós-graduação/ Mestrado em Dança. Como se para seguir a carreira de dançarino profissional ou licenciado em dança bastasse apenas o dom de dançar ou fazer cursos aleatórios em academias. Nada contra a quem segue essa trilha. Mas, pelo amor de Deus, é preciso entender que um profissional da área de dança, como todas os outros profissionais, ambos necessitam de uma validação acadêmica para sua formação. O que me faz diferente de alguém que escolhe ser advogado, médico ou pedagogo? AMBOS TEMOS A OPÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA UNIVERSITÁRIA PARA TRILHAR. EU DISSE: AMBOS!

É uma pena que somos todos reféns da tirania da razão, onde só se legitima áreas que privilegiam o mental. O que faz das artes do corpo, artes menores, desacreditadas e muitas vezes vistas apenas como puro entretenimento e não como produtoras de conhecimento.

Invertemos o jogo...

Aqui trarei o entendimento da dança como uma ação cognitiva para que pessoas da área de dança, não se sintam mais constrangidas com situações cotidianas descritas no inicio do texto.

Para tal tarefa, é preciso entender que o processo cognitivo acontece no corpo (entendido como mente e corpo inseparáveis) e, principalmente em um corpo não separado das experiências cotidianas.

Nesta direção, a dança tem como local de ocorrência imediata o corpo e dessa forma, favorece o corpo conhecer-se e a produzir conhecimento a partir do seu fazer. Ou seja,conhecimento a partir das ignições sensório-motoras provenientes do seu feitio.

Entendimentos esses que colaboram para a percepção do corpo não apenas como local de implementação da experiência/dança, mas também enquanto local de cognição e formação de conceitos. Para isso, é preciso pensar o corpo fora da noção dos binarismos, a exemplo de mente e corpo separados. Sendo assim, George Lakoff
[1] e Mark Jonhson[2] (1999), trazem idéias que servem a este propósito. Para estes autores, a mente é embodiment[3], ou seja, “corporificada”, idéia esta traduzida e implementada por Rengel[4] como mente corponectiva[5]. Logo, não existe mente separada e independente do corpo; razão não existe fora do corpo como se imaginava, mas nasce da natureza do cérebro, corpos e experiência corporal, pois “o ato pensante e o ato consciente passam a ser entendidos como implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de uma razão descolada ou anterior à experiência” (NUNES, 2003, p. 128), o que favorece pensar que

Cada entendimento que nós podemos ter do mundo, de nós mesmos, e os outros podem somente ser moldados em termos de conceitos formados por nossos corpos [...] Esses conceitos usam nosso sistema perceptivo, imagético e motor para caracterizar nosso ótimo funcionamento no cotidiano. Esse é o nível no qual estamos em contato máximo com a realidade de nosso ambiente (LAKOFF & JONHSON, 1999, p.555).


Portanto, é preciso considerar o corpo que dança enquanto “articulador, propositor e elaborador de informações” (KATZ, 2004, p.121) e assim, refleti-lo como estratégia cognitiva e de organização dos fenômenos que o constitui.

Avançando mais um pouquinho, trago a idéia da dança como pensamento do corpo de Katz
[6]. Sob essa perspectiva, é possível ir além do entendimento da dança apenas como uma ignição que nos permite “expressar” sentimentos e emoções. Assim, torna-se mais que urgente pensar que cada ação motora da dança se configura como um pensamento, pois como descreve Katz (2005, p. 40), “quando a dança acontece num corpo, o tipo de ação que a faz acontecer é da mesma natureza do tipo de ação que faz o pensamento aparecer”. A autora sugere ainda que:

Quando o corpo pensa, isto é, quando o corpo organiza o seu movimento com um tipo de organização semelhante ao que promove o surgimento dos nossos pensamentos, então ele dança. Pensamento entendido como o jeito que o movimento encontrou para se apresentar (KATZ, 2005, Apresentação).

Esse é o interesse, aqui, apresentar a dança como um pensamento implementado, ou seja, uma experiência sensório-motora que opera no contínuo corpomente, sem a separação de movimento e pensamento. Implementar a dança como pensamento do corpo propicia aos corpos que dançam o redirecionamento de posições e o exercício de questionamentos relacionados às ações/atitudes do cotidiano.

Essa hipótese acompanha, ainda, o modo empregado para designar pensamento: “uma maneira de organizar informações – uma ação, portanto, e não o que vem depois da ação” (KATZ, 2005, Apresentação). Nessa direção, é possível fazer aproximações com posição semelhante, sustentada por Sheets-Johnstone (1990) “[...] os conceitos são gerados ou tomados conscientes pelo corpo vivo na sua vida diária, ou seja, em ações e não em modelos dados a priori”, e continua citando ainda alguns exemplos de ações: mascar, urinar, respirar, etc. como geradoras de conceitos. Posições que possibilitam indicar a dança enquanto ação propositiva nos modos de organizar conteúdos simbólicos de quem a pratica.

O acompanhamento da proposição de dança como pensamento do corpo reside no sentido do pensamento como síntese temporária das relações entre as informações que transitam no corpo, no apronte da dança. A particularidade dos acionamentos e a transitoriedade das circuitações corporais provocam a exposição de soluções provisórias de ajustamentos no mundo.

Olhando para nosso próprio umbigo...
Basta sair do discurso acadêmico e refletir sobre nossas experiências e fazeres com a dança que vamos encontrar uma lista de ajustamentos e reposicionamentos de vida. Ajustamentos que muitas vezes iniciam-se a partir de questionamentos pessoais e das atitudes que cometemos no cotidiano.
De imediato a dança do ventre configurou-se uma ação cognitiva na minha vida, na medida em que permitiu o resgate/reposicionamento de conteúdos internos relacionados com a minha sexualidade, feminilidade e atitude frente ao outro.
Não quero aqui fazer uma listagem de transformações. O que seria muito fácil, afinal fui e sou exemplo de diversas reposicionamentos pessoais e co-participante de mudanças/ajustamentos na vida das alunas. Com a experiência de 16 anos de ensino de dança, posso legitimar o que escrevo. Sem esquecer, da ação desenvolvida com dança do ventre em interface com a violência sexual, na qual originou uma dissertação de mestrado e repropôs a dança do ventre como uma ação propositiva na reorganização de corpos adolescentes sujeitados.

Reposicionamento político: de que lado você está?

Tento concluir com a seguinte questão: Você vai continuar engrossando o coro de vozes que reforçam o corpo como o centro das emoções e a mente como o lócus do conhecimento?

Torna-se urgente se posicionar contrária a tirania da razão, que recoloca a dança como um fazer menor, justamente por não aceitar o corpo que dança como produtor de conhecimento. Pois, enquanto não lutarmos por esse reposicionamento político seremos co-responsáveis pela o tipo de profissional que está no mercado de dança. Assim como, o valor que se paga pelo nosso cachê, nossa hora-aula e pelas atrocidades que se cometem frente à lei de fomento e editais destinados a dança.

Não importa se estamos no comecinho dessa trilha. O que de fato se faz necessário é que mudemos nosso pensamento AGORA, a começar pelo entendimento de que corpo e mente não são instâncias separadas. Talvez seja o 1º passo para desmontar o abismo entre nós, profissionais da dança e o senso comum.
Referências Bibliográficas:
KATZ, Helena. Corpo e movimento II. In: GREINER, Chistine; AMORIN, Claudia (orgs). Leituras do Corpo. São Paulo: Annablume, 2003, p. 78-88.
______. Um, Dois, Três: a dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005.
______. Vistas de entrada e controle de passaportes da dança brasileira. In: Tudo é Brasil. CAVALCANTI, Lauro (org.) Rio de Janeiro: Itaú Cultural, p. 121-131, 2004.
[1] George Lakoff é lingüista cognitivo e professor de Lingüística da Universidade da Califórnia em Berkeley, EUA. Foi um dos fundadores da Lingüística Gerativa dos anos 60 e da Lingüística Cognitiva nos anos 70. Em parceria com Mark Jonhson foi autor dos livros: Metaphors We Live By (1980) e Philosophy in the Flesh, the embodied mind and its challenge to Western Thought (1999).
[2]Mark Johnson é filósofo cognitivo, professor e coordenador do Departamento de Filosofia da Universidade de Oregon. Parceiro de George Lakoff, é bem conhecido por contribuições no campo da Filosofia, Ciência Cognitiva e Lingüística Cognitiva.
[3] Termo utilizado por Lakoff e Johnson para o entendimento da mente/corpo inseparáveis. Para estes autores o processo de conhecimento se dá no corpo. É o corpo que conhece. É o corpo que pensa. O pensamento não se produz na razão, fora do corpo.
[4] Lenira Rengel é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, Mestre em Artes – Dança pela Unicamp e Bacharel em Direção Teatral pela ECA/USP. Assessorou a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo na linguagem dança (2002-2007) e é autora do Dicionário Labam, Cadernos de Corpo e Dança (Editora Annablume), entre outros.
[5] Termo traduzido por Lenira Rengel e José Roberto Aguilar para embodiment, no sentido de mente/corpo trazidos juntos, em vínculo biológico, psicológico e cultural.
[6] Helena Katz é crítica de dança, professora da Faculdade de Comunicação e Artes do Corpo e do Programa de Pós-Graduação de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autora do livro Um. Dois. Três: a dança é o pensamento do corpo, 2005.

2 comentários:

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  2. Márcia, estou lendo e relendo este texto, pois a situação que origina o discurso é sempre a mesma, no fundo nós mesmas sentimos um pesar ao esclarecer sobre nossa dança, apesar de a amarmos, é como aquele filho adolescente que obviamente ama seus pais mas não gosta de aparecer com eles na frente dos amigos, hehe...Nunca concordei com a idéia de corpo/mente separados, pois tanto emoção quanto pensamento, inteligência ou intuição, vem do cérebro, enviando impulsos para que o corpo todo possa sentir e manifestar. Acredito que a dança é uma forma de educação através do corpo, do som, da intenção,da inspiração, e ela se torna o veículo para o corpo se manifestar inteligentemente, viabilizando a comunicação desta intenção do interno para o externo em qualquer proporção. Usamos muito o rótulo "corpo e mente" e sinceramente é difícil detonar com esse "tabu cartesiano"!
    Realmente precisamos refletir sobre nossa postura em relação à arte que escolhemos representar, a segurança e o orgulho em ser dançarina precisam alcançar o consciente coletivo... sei que a culpa por tanto constrangimento vem da informalidade deste trabalho, falta de studo mesmo, mas será que mesmo a condição acadêmica pode, futuramente, transformar essa percepção? Não justificando ou defendendo qualquer situação ou nível que a bailarina tenha, mas com olhos neutros questiono: as pessoas não vão sempre avaliar a qualidade dos bailarinos e a integridade da dança somente pelo seu desempenho em cena? Será que uma dança, como a do ventre, que socialmente apresenta a mais tórrida imagem, sempre vinculada à prostituição desde o big bang (rsrs), conseguirá um dia transcender esta conduta? Será que o fato de ser bailarina e não falar abobrinha o tempo todo pode mesmo nos trazer esperança de um dia estufar o peito na sociedade e na família?
    Vejo que muitas vezes a tentativa de trazer a dança do ventre para um nível mais elevado perante público e outras classes artísticas foi através do luxo do figurino. Não resolveu. Percebo também que bailarina de dança do ventre em show entra muda e sai calada, isto sendo repassado como sendo sempre a melhor conduta. "Bailarina não fala, só dança"...Mas será que se criássemos mais oportunidades de falar mais sobre a dança,não apenas entre nós, mas em palestras e aulas abertas, não seria uma forma eficiente de alcançar mais respeitabilidade? Afinal, as outras profissões mais reconhecidas possuem pelo menos duas atribuições principais: a necessidade das pessoas em relação ao trabalho e a eficiência do profissional em alcançar o objetivo proposto. Para nós, talvez isso venha a funcionar algum dia, assim que as pessoas e nós mesmas soubermos esclarecer enfaticamente a devida importância social do nosso trabalho. "Por que dançar e para quê? O que minha dança pode acrescentar de fato a quem assiste ou aprende? Por que ela é importante?" Uma terceira atribuição: a forma clara e eficiente de comunicação escrita ou falada do profissional torna-o culto e distinto independente da sua escolha. Por isso também, a importância da faculdade. Ufa! E agora, José, na prática!

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