terça-feira, 7 de julho de 2009

Trechos do Memorial do Mestrado. Rastros de uma trilha dançante...

Setembro/2007
O meu interesse pela dança se deu a partir de uma indicação médica. Aos cinco anos de idade por apresentar déficit motor em decorrência de resquícios de um nascimento prematuro, o balé clássico surgiu como uma possível solução para esta questão. Na contramão de um acordo médico-familiar, estar na Escola de Balé do Teatro Castro Alves não se reduzia apenas ao treinamento técnico imposto pela dança e nas suas possíveis soluções para uma corporeidade fragilizada. Para mim, o mais fantástico era percorrer aqueles corredores imensos e escuros, e por inúmeras vezes desobedecer à disciplina formal e silenciosa que nos obrigava a caminhar como miniaturas de Margot Fontaine. Longe de sucumbir à fantasia de uma bailarina clássica, e oferecer ao meu corpo apenas demi-pliés como constituinte de uma corporeidade padrão, seguia correndo pelos corredores, pulando os degraus das escadas, olhando as aulas avançadas pela fechadura da porta e explorando o figurino, o ápice do proibido, com lapsos de olhares. Dentro deste contexto se iniciou meu estudo em balé clássico, muito mais pela aventura de estar num outro espaço distinto do habitual, do que pelo desejo de formação nesta técnica de dança. E assim se seguiram 10 anos, entre aulas, apresentações e participações em festivais e exames da Royal Academy Dance.

Aos 15 anos, na busca por uma outra opção de dança e sem algum pretexto para nutrir a formação em balé clássico, surgiram outras possibilidades dançantes: do jazz a dança flamenca. Incursões que seguiram até a maioridade, quando já cursando a graduação de Veterinária da Universidade Federal da Bahia, as disciplinas eletivas (Expressão Corporal e Prática da Dança), na Escola de Dança, apresentaram-se também como um outro jeito de constituir a minha corporeidade, nesse momento tão implicada com a conduta médica da profissão de Veterinária. Lembro que entre a aula de Anatomia II, grupo de dissecação de animais e a aula de estatística, retirar o jaleco e colocar a malha de dança configurava-se, no meu ponto de vista, uma subversão. E como as escolas são vizinhas, sair do prédio de veterinária e chegar ao de dança, era como burlar protocolos. Sempre ouvi dos meus professores a seguinte pergunta: você vai ensinar os cachorros a dançar? Como se a questão imposta fosse essa.

A aproximação física entre a Escola de Veterinária e a Escola de Dança, e o contato com a dança do ventre em 1993, na cidade de Belo Horizonte, durante o período do meu estágio de conclusão de curso, foram duas situações que determinaram às minhas escolhas futuras. Quando em 1995, após a seleção de mestrado em Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Pública na Universidade de São Paulo, se deu também a seleção para vagas residuais da Universidade Federal da Bahia, não tive dúvidas, me inscrevi no teste de habilidade específica para o curso de dança. E na contramão do desejo familiar e do contexto acadêmico-profissional, após a aprovação, abandonei a carreira acadêmica na USP e me matriculei no curso de Licenciatura em Dança.

O ingresso no curso de Licenciatura em Dança, em 1995, além estabelecer uma jornada dupla de ocupações, respectivamente, aulas na graduação pela manhã, plantões em clínicas veterinárias no período vespertino ou noturno, foi à experiência que anunciou o fim de uma carreira profissional em veterinária e a luta por uma formação em dança e consolidação no mercado de trabalho. Nesse mesmo ano, motivada pela graduação, comecei a ministrar algumas aulas de dança do ventre em Escolas de Dança de Salvador. Um movimento que se prosseguiu timidamente, até que em 1998, ainda como aluna da graduação, tive a oportunidade de introduzir aulas de dança do ventre no quadro dos cursos livres dos cursos de extensão. Essa experiência foi um grande salto na minha carreira enquanto professora, pois possibilitou as primeiras articulações entre o ensino e a pesquisa em dança. As aulas nos cursos de extensão prosseguiram até o ano de 2007, ano de ingresso no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Dança.

Desenvolver atividades de ensino no curso de extensão não apenas possibilitou consolidar meu nome no mercado da dança em Salvador e a saída definitiva do campo de trabalho em veterinária, como também, fez com que eu ampliasse o meu olhar sobre a dança do ventre e investigasse procedimentos metodológicos que atendessem à proposta pedagógica da Escola de Dança. O foco estava em destituir fazeres habituais e restituir outros: tratar a dança do ventre como princípios gerais a serem explorados e abrir brechas para um processo de investigação por parte das alunas. Ir além do entendimento da dança apenas como uma coleção de passos e do processo criativo enquanto composições coreográficas a serem reproduzidas.

No ano de 2002, ao final da graduação, mas especificamente na disciplina Prática de Ensino da Dança e durante o meu estágio supervisionado, tive a oportunidade de refletir o meu percurso na graduação. Diante de uma proposta desafiadora de propor outras inserções na prática pedagógica, fui instigada pela oportunidade de ministrar aulas de dança do ventre no CEDECA (Centro da Defesa da Criança e Adolescente), para adolescentes vítimas de violência sexual. Em 2003, sob a orientação da Profa. Beth Rangel, essa ação voluntária foi sistematizada na forma de um projeto de extensão e concorreu ao edital da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA- SESu-MEC/PROEXT 2003. Após ser selecionado e contemplado com apoio financeiro, o projeto foi executado em 2004 e reconduzido para uma segunda etapa em 2005.

Ainda que desenvolvido de forma experimental, o “Projeto Re-CREio: a dança do ventre na reconstrução da corporeidade em adolescentes vítimas de abuso sexual”, se constituiu uma proposição inaugural. Não apenas pela aproximação de fronteiras como dança do ventre, corpo e abuso sexual, mas também por configurar a única abordagem de dança dos serviços institucionalizados ao atendimento às pessoas em situação de violência sexual. As proposições desenvolvidas, já indicavam implicações no modo como o corpo, e o corpo que dança eram tratados na situação do abuso sexual. Assim, desenvolver uma pesquisa acadêmica a partir desse campo de atuação tem um compromisso em propor questões, reflexões e indicar as instituições especializadas um outro jeito de organizar a sujeição.

Estar vinculada hoje a um Programa de Pós-Graduação em Dança vai além da possibilidade de desenvolvimento de uma pesquisa e da obtenção de um título de mestre em dança. Para mim, é a possibilidade de produção de conhecimento acadêmico em dança comprometido com desafios. Primeiro por inaugurar um campo de pesquisa no Brasil, com uma arquitetura de conexões antes nunca investigada. E, segundo por inserir a dança, e em específico, a dança do ventre em experiências de enfrentamento a violência sexual. Na contramão de um entendimento habitual de dança do ventre e da própria violência. É desvestir ações dos figurinos habituais e propor o corpo que dança como “corpossibilidades” de organização da sujeição.

Considero importante mencionar que, anterior à aprovação como aluna regular deste programa de pós-graduação, ministrei aulas como professora substituta da Escola de Dança da UFBA. Essa experiência contribuiu em muito no amadurecimento das relações entre ensino e pesquisa. E possibilitou uma troca de informações com outros professores, o que me fez construir caminhos mais consistentes para a construção de conhecimento acadêmico em dança.

Depois de ingressar no mestrado e ter sido contemplada no semestre 2007.2 por uma bolsa / FAPESB, tive que pedir exoneração do cargo de coordenação pedagógica do Curso de Educação Profissional Técnica em Dança de Nível Médio da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia- FUNCEB, justamente por não permitir acumular vínculo empregatício. É importante mencionar que os sete meses de exercício dessa função determinaram um grande crescimento profissional. Justamente pela diversidade de ações impostas. Estar à frente de 14 professores e uma média de 90 alunos de um curso técnico de dança, dentro de um contexto de transição e de mudança de proposta pedagógica, requisitava não só ações administrativas e pedagógicas, mas principalmente ações questionadoras e propositivas. Cada reunião de coordenação pedagógica e cada sondagem feita com o corpo discente constituíam a oportunidade de geração coletiva de um novo projeto político pedagógico e consequentemente, uma revisão do currículo vigente. Uma experiência que me deixava muito à vontade e que alimentava as habilidades e capacitações desenvolvidas no percurso da graduação e do período de professora substituta.

Escrever este memorial a partir da minha trama da vida, em uma narrativa que se assemelha a um conto, não tem a intenção confessional, ainda que pareça. Avessa a essa forma de comunicação, a minha proposta aqui é revisitar experiências. Experiências que são corpo e constituem pensamentos, um modo de ser e estar no mundo. É refletir o quanto transitar por experiências aparentemente não intercambiáveis possibilitou um outro jeito de organizar informações referentes à veterinária, a dança e a dança do ventre. È subverter protocolos e a reiventar jeitos de abrigar uma Márcia veterinária, licenciada em dança e também dançarina do ventre. E perceber, que de algum modo, esse jeito de estar no mundo, subvertendo e reiventando situações postas, se faz presente não apenas no domínio profissional, no jeito de encaminhar a pesquisa do mestrado, mas também desde a situação do meu nascimento. Vir ao mundo aos seis meses, com apenas um quilo e duzentos gramas, e assim sobreviver, não deixa de ser uma ação que subverte um prognóstico negativo e habitual na década de setenta.

Acredito que parte do substrato constituinte do meu projeto de pesquisa acolhe essa lógica das relações que se tecem nas experiências vividas. Pesquisar é viver. E no meu caso, viver é seguir na contramão das situações postas. Propor novos jeitos de seguir.

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