sábado, 29 de maio de 2010

LEMBRETES COMO ANTÍDOTO PARA O LUTO ESTENDIDO


Ultimamente a saudade de meu pai tem sido um grande aprendizado para mim. Um desafio para não migrá-la junto a outras sensações, como por exemplo, a melancolia, que insiste vir junto com a alegria que se corporifica com a presença de Maria Elisa. Pois, quem diz que a saudade se dilui com o tempo, se engana. Em minha opinião, ela migra, traveste-se de outras circunstâncias e emoções. Agora mesmo, não tem como desviar-se, saudade-melancolia que antecipa a ausência de meu pai no dia do nascimento de sua neta.

Muitas questões me invadem e invadiram em todos os momentos em que a saudade vem/veio visitar-me travestida em música, lembranças de infância, sonhos, presenças... E a maior dela resvala em uma ilusão: se de fato existe algo a ser feito para que a saudade não retorne de forma tão cortante no decorrer das nossas vidas. De forma menos cifrada, eu diria: existe alguma possibilidade de vivenciar um luto menos estendido? O que deve ser feito, afinal?

Ahhh já me perguntei tantas vezes isso... Já me culpei tanto... O fato de não ter tido a coragem de chorar o que meu luto pedia. O modo como encarnei a leitura feita por meu pai - da filha organizada e segui como de costume, organizando documentalmente a família. Preferi seguir em busca do atestado de óbito, pensão para minha mãe, acertos do sepultamento, etc. Culminando com a defesa do mestrado em dança dois meses depois, sem ao menos me dar a chance de escolher aquietar-me e elaborar a dor de outro jeito.

Acredito que seguir nesse fluxo de ações, talvez tenha sido a forma possível para lidar com a perda do meu pai. Pois de acordo com o cientista Fred Drestke, seguir em movimento é uma escolha cognitiva para categorização da experiência. Digamos que um modo de organização, onde os acontecimentos seguintes funcionariam como uma ordenação necessária para colocar as coisas no lugar.

Contudo, ainda me pergunto: será mesmo? Ou seguir no fluxo nada mais é que uma ficção devastadora, que no futuro quer você queira ou não, lhe cobrará um outro tipo de elaboração que não foi feita? Seguir em fluxo cria de fato deslocamentos? Muda a saudade de o lugar? Modifica?
...
Como entendo que nos primeiros momentos somos capturados pela dor da perda e pelo entorno, que para mim foi vivenciado como um espaço preenchido/esvaziado por solidão, silêncio, vozes, memórias, palavras descabidas, afetos, etc. Resolvo aqui, escrever algumas palavras, como uma tentativa de romper com esse seqüestro violento imposto pela própria situação. Pois é impressionante o que se diz e o que se faz em estado de perda. Muitas vezes pela impossibilidade de lidar com a falta de resolução instantânea. Resolução esta a ser almejada por muitos anos depois. Olha eu, aqui, dois anos após a morte de meu pai enfrentando o fantasma de algum tipo de solucionamento. Sendo revisitada constantemente pela saudade...

Sinceramente, não quero que minha voz chegue de maneira pretensiosa. Ou mais uma vez entendida como uma voz acadêmica. Não! Que seja entendida como um lembrete, endereçado primeiro a mim mesmo. Pois escrevo inicialmente, para mim. E ainda que atualmente peça ajuda aos meus livros, como um resíduo de elaboração, entendo que cada um lança mão do que lhe é possível. Eu, por exemplo, sigo de mãos dadas com Deus. Ele é meu conforto e um modo de comunicar-me com meu pai. Contudo, ontem em plena aula de doutorado, foi impossível escapar dessa conexão, ou seja, o luto e o entendimento de mobilização infinita proposto pelo filosofo alemão Peter Sloterdijk.

Ahhh pessoas... É impressionante como cada dia mais entendo que vivemos em rede. Se nosso corpo funciona em rede, o que podemos dizer das temporalidades? Quando se entende que os tempos são dimensões em rede, encontro um tipo conforto para esse ir e vir dos tempos e acontecimentos. Não tem como escapar! Pois, não existe a idéia de um passado fixo lá no ano de 2008 e do presente com o que se vive em 2010. Os anos de 2008, 2009 e 2010 são dimensões que se atravessam, num ir e vir dos tempos e acontecimentos. A questão é: como seguir nesse ir e vir dos tempos sem se tornar seqüestrada pela idéia de acontecimentos em suspensão? Chega de atormentar-me com inquietações que jamais terei solucionamento. Ou seja, do que fiz, do que deixei de fazer nos dias que se seguiram ao sepultamento de meu pai em outubro de 2008.

Creio que se existe alguma possibilidade de redenção para minhas inquietações, esta não se encontra na suspensão dos acontecimentos ou do retorno ao passado, e sim na possibilidade de aprender com o que foi vivido e está sendo feito, re-encenado a todo instante.

Assim, ouso-me a escrever meus aprendizados (sempre inacabados) na forma de lembretes. Um marcador, post-it, que mais uma vez digo: um tipo de serviço prestado primeiramente a mim mesmo. Lembretes a serem lidos, aqui no blog, toda vez que a saudade vier me visitar.

1º LEMBRETE
Não existe a possibilidade de colocar um ponto final na saudade e seguir adiante. Saia desse lugar de que é preciso por fim as coisas, para dar um passo à frente. A questão não se encontra em travestir a saudade de epílogo e passar para o capítulo seguinte, e sim fazer dessa convivência o ponto de seguimento para outras escritas. É ilusão pensar que o ponto final é a garantia de ZERAR a saudade.

2º LEMBRETE
O automatismo cinético, essa busca de estar sempre em fluxo, em movimento, não solucionará a perda. É uma ilusão pensar que estar em ação, nesse período de perda, resolverá o luto. Ainda mais quando somos encorajados por frases como:
“Que é preciso ficar bem”
“O tempo ajudará”
“Nada melhor que um dia após o outro”
“É preciso prosseguir”

É preciso estar atento que a captura pela mobilização infinita, idéia trazida por Peter Sloterdijk, na qual todos nós precisamos estar em movimento, dentro de um fluxo de ações que não cessam, se configura numa estratégia para não se vivenciar o luto. UMA ILUSÃO, TALVEZ. Será mesmo que no momento de perda, se faz necessário prosseguir? Ou dar um tempo para se vivenciar a dor?

Talvez, essas frases ditas e repetidas por nós são discursos que reforçam a pressão do NÃO ACONTECIMENTO DO LUTO. Afinal, o estar em movimento, dá a falsa sensação de encurtamento do luto e até de superação. E que no meio do fluxo, na etapa seguinte, se está a garantia de solucionamento do luto. Saiba: Não existe solucionamento para o luto. Nem encurtamentos. Você carregará o luto para sempre.

Volte-se para o seu corpo. Para o que ele pede. Chore. Corra. Grite. Dance o luto. Sei lá... Seja corajosa e honesta com o seu desejo nesse momento. Cair na cilada da ilusão tem um preço muito alto. É preciso coragem para seguir sem buscar saídas elegantes: como a de se zerar o luto e a saudade.

O importante é reconhecer onde você está e o que está fazendo. Mesmo que opte em seguir em movimento. Não vejo problema nisso. O problema consiste no não reconhecimento de que muitas ações são ilusões e que sinceramente, não são solucionamentos permanentes.

3º LEMBRETE
Não se culpe, não se atormente pelo que não foi feito. Saiba que tudo que se fez, o MAIS aqui, sempre será sinônimo de MENOS. Que sempre você será seqüestrado por essas dívidas eternas. A palavra que não foi dita. A ação que deixei de fazer. Tantas outras coisas. Saiba: se todos os seus atos foram feitos por amor, isso é o que importa. É no amor que encontramos a redenção de qualquer tipo de aprisionamento.

4º LEMBRETE

A melhor escolha é reinventar a convivência. Impossível na forma física, que tal na forma de lembrança? São nas lembranças diárias que se abrem outras formas de seguir. Lembrar-se de acontecimentos da infância, viagens, frases, o cheiro, o tom da voz, a cor dos olhos... uma música? São infinitas formas de lembranças-convivências que podemos abrigar internamente em nós. Não apenas como lembranças-ausências, e sim como centelhas de meu pai renovando-se a cada dia em mim. Quem sabe, assim a saudade não vem travestida de uma presentificação gostosa e não apenas sofrida? Hoje, sou responsável em habitar o imaginário de Elisa com lembranças doces do avô e não apenas com a sua ausência dolorida que se anuncia com a chegada do parto.

5º LEMBRETE
A morte não é o fim da comunicação. É preciso desmontar esse entendimento que a comunicação só acontece na forma de diálogo verbal com os corpos em vida. Aqui, tendo me libertar das formas habituais de comunicação. Para pensar a comunicação em outro lugar. Pois meu pai está em mim. Comunica-se comigo todos os dias. Basta olhar-me no espelho e ver o formato do meu rosto. A sua herança no meu corpo, é sem dúvida, uma forma de diálogo diário. Sem falar de outras crenças. A quem acredite, que a morte não esgota a comunicação entre as dimensões. Enfim... eu já senti meu pai ao meu lado, em uma frase que surge na minha tela mental, em uma música e em muitos sonhos...

6º LEMBRETE
O laço mais forte entre pais e filhos é o AMOR. Não me proponho a escrever sobre esse sentimento tão pessoal. Apenas quero lembrar-me que diante de qualquer saudade que me aflija nesse momento, eu tenho também a escolha de preencher-me internamente com o amor construído com o meu pai. E antes que o amor se ponha a serviço da dor, faço a escolha inversão:
Amor como gosto bom
Amor como forma de re-ligare
...
E a certeza do quanto fui amada por ele.

7º LEMBRETE
O tempo me dirá... ou quem sabe você, que está lendo esse post?





5 comentários:

  1. Oi Cuma!!!entendo sua saudade. muito bem...!Pra mim que tbm perdi a minha mãe que ,o que eu sou é a forma de te-la presente,o que eu sinto é como se um barco sempre me leva sem saber o rumo de minhas lembranças,angustias,vazios...que as vezes me sufoca,as vezes me atormenta.Mas a morte que é inaceitavel.Ver sua mãe sofrer e não ter como evitar,agonizar e pensar que aqueles médicos que vc deposita toda esperança,que são pessoas que salvam vidas ,de repente vc perceber que eles tbm erram,é muito dificil !!!tudo vai escapando...sem vc perceber! então minha dor aumenta e vc não aceita aquela morte...Mas o que fazer?acho que é seguir em frente porque não tem outro jeito e lembrar com amor aqueles tempos em que vivemos com nossos queridos pais!!Me junto a vc nesses sentimentos únicos.E fico aqui esperando para ver a chegada de Eliza que vai ser o maior presente que Deus está nos dando!!!Te amo,bjs

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  2. Marcinha, gosto de um post-it assim: fiz o melhor que pude naquele tempo. Sempre dou o melhor de mim, ainda que isso não pareça ter sido suficiente.

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  3. Marcia, o que escreveu veio como uma irmã falando algo que eu precisava ouvir enquanto afaga meus cabelos. Me emocionei e valeu, obrigada. Perdi meu pai há 14 anos e toda uma carga emocional vem à tona nesses momentos especiais em que nos encontramos. Tenha certeza que seu pai e todas as pessoas e momentos importantes estarão presentes de toda e qualquer forma, quando sua estrelinha vier ao mundo, olhar pra você e parar de chorar como quem quer dizer: estou bem agora. Beijos pra você!

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  4. Márcia, é difícil falar com quem, como você, quando fala libera o coração para se expressar com essa doce liberdade, ainda que dizendo da sua saudade que bate do seu querido pai. Suas palavras soam como suave brisa,acalentam, animam e estimulam outras pessoas a encarar a vida e suas vicissitudes com a firmeza e ternura necessárias para uma caminhada que tenha sentido.
    Acolho seus lembretes como sinais luminosos que indicarão para tantos outros os rumos que precisam encontrar no meomento em que experimentam sentimentos como esses que você partilha por aqui. Suas palavras, qual brisa suave, acalentam e enternecem outros corações saudosos. Elas dançam e se corporificam no momento em que encontram outros corpos onde repousar.
    Acredito que há um sem número de pessoas precisando ler esse texto,pois ele é brota do chão da experiência, do fértil solo de um coração livre que sorri em meio às lágrimas, que na espera burla a ansiedade com um olhar sereno e mãos estendidos para receber uma nova vida, fruto de amor e tmbém da Graça de Deus.
    Obrigado por me mostrar seu blog e estender até mim suas reflexões.
    Grande abraço,
    Waldir

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  5. Que bom receber o carinho de vocês... tão importante nesse momento que preciso dar um outro sentido a perda de meu pai. Obrigada!

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